Sobre a aversão aos indivíduos de outras regiões ou estado.
Por Vanessa Sabino
Preconceito, por que ainda temos? (Foto: Vanessa Sabino)
Nesse segundo episódio da série sobre preconceitos, abordaremos o preconceito regional, que é a aversão aos indivíduos de outras regiões ou estado.Quem não conhece a longeva “guerra” entre Rio de Janeiro e São Paulo? O carioca diz que “paulista ‘puxa’ no R” e o paulista diz que “carioca fala com chiado” ou o estereótipo de que “mineiro fala calmo demais”? Essas são formas de se adquirir preconceito regional. Porém o preconceito vai muito além de só caçoar da forma de falar dos indivíduos.
Um estudo realizado em 2017, pela Skol, em parceria com o Ibope, apontava a região Sudeste como a mais preconceituosa. Justamente onde estão localizados os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, os quais receberam até o final do século XX e início do século XXI, os maiores fluxos migratórios, por serem considerados estados com maiores oportunidades de empregos na época. E a maioria desses imigrantes vieram das regiões Norte (N) e Nordeste (NE).
A psicóloga Karla Soares nos explica a que se deve esse resultado:
"Diria que se deve ao processo de colonização onde essa região se beneficiou da opressão e escravização de minorias para crescer economicamente. Com a abolição da escravidão nenhuma política foi criada pensando na necessidade desta população escravizada, criando uma grande desigualdade social no mesmo espaço geográfico e se perpetuando o ódio às minorias sociais”- afirmou Karla Soares em entrevista a CJ Madureira
A fiscal de loja Ana Kelly Pinheiro, de 29 anos, natural da cidade de Crateús, Ceará, moradora da cidade do Rio de Janeiro já há 11 anos, conta que já sofreu diversos ataques verbais por ser nordestina:
“Quando eu trabalhava numa famosa loja de departamentos, eu estava atendendo no caixa. Uma cliente na fila era a próxima a ser chamada para passar as compras. O meu computador estava travando e eu tive que reiniciar. A cliente ficou alterada, ficou reclamando por eu não ter chamado “o próximo”, começou a falar que essa raça (nordestinos) é maldita, raça de burro de carga e por isso eu tinha que estar trabalhando ali. Falou que cearense não era nem gente. Foi uma confusão, porque os outros clientes da fila queriam agredir essa mulher. Eu falei pra ela que independente de eu ser cearense, ela carioca, isso não tem nada a ver”- relatou Kelly.
Ela ainda nos relata como se sentiu com essa e outras discriminações pelas quais passou:
“É uma coisa surreal. Eu me senti ofendida. A gente fica triste, né? Porque é uma besteira (o motivo do preconceito), pois quando a gente morre, vai todo mundo pro mesmo lugar. A pessoa ficar falando esse tipo de coisa é uma idiotice. E ainda ficam falando do formado na nossa cabeça, do jeito que ‘falamos errado’. Nós não falamos errado. É o nosso sotaque que é diferente, os dialetos...”
Karla Soares também informa que é possível indivíduos vítimas de preconceito desenvolverem traumas ou transtornos psicológicos:
“Traumas são respostas emocionais a acontecimentos que nos perturbam, todos eles podem ter contribuição ou servir como gatilho para desenvolvimento de transtornos de ansiedade, quadros depressivos e transtorno pós-traumático”- disse a psicóloga.
Algo parecido aconteceu com a universitária do curso de Letras, Fernanda Alves, 32 anos, da cidade de Varjota - Ceará:
“Minha primeira e maior experiência foi logo assim que cheguei no Rio [de Janeiro]. Sofri muito devido ao meu sotaque, até reprovei de ano. No meu 1° ano do Ensino Médio me senti muito mal com as piadas que faziam comigo”.
O preconceito regional não está restrito somente à região do Norte e Nordeste. Prova disso é o que conta a microempreendedora N., de 29 anos, que prefere não ter seu nome revelado, que nasceu e morou durante muitos anos na cidade de Joinville, Santa Catarina, que, porém, vive atualmente aqui na cidade carioca:
“Uma vez, uma pessoa que estava com raiva de mim me chamou de ‘bicho do mato’. Tenho o sotaque bem forte de lá, por isso o carioca pensa que eu sou caipira. Joinville é a maior cidade do estado, com mais indústrias”.
Ela nos informa ainda qual foi sua reação:
“Eu não liguei. Hoje em dia, o irmão dessa pessoa mora no mesmo ‘mato’ que eu já morei. Acho que essas pessoas fazem isso pra se sentirem superiores de alguma forma”.
Vale lembrar que várias foram as figuras das diversas regiões do país que contribuíram ao longo dos anos para o desenvolvimento e enriquecimento da identidade e cultura nacionais, como, por exemplo, o poeta Castro Alves (1847-1871), nascido na Bahia, com suas poesias abolicionistas, políticas, sociais e morais, Rachel de Queiroz (1910-2003), cearense, escritora e grande ativista na luta contra a miséria e a seca, Jorge Amado (1912-2001), nascido na Bahia, foi escritor, político e, além de clássico da literatura brasileira, foi autor da lei que assegura o direito à liberdade de culto religioso, Chico Science (1966-1997), cantor compositor, um dos principais representantes do movimento “Manguebeat”, natural de Olinda - PE, dentre tantos outros. Como não citar também a recente ascensão nacional da paraibana Juliette Freire, participante do reality show Big Brother Brasil de 2021? Sua valorização pela cultura nordestina ganhou e carisma ganhou o coração de milhares de brasileiros e contribuiu para um entendimento e reconhecimento dessa cultura.
Ainda segundo Karla Soares, o preconceito surge do que não se tem conhecimento. Figuras públicas de regiões fora do Sudeste e Sul podem ajudar na representatividade e multiplicação da informação, ajudando a diminuir as discriminações.
Num país tão grande e diversificado como o Brasil, com influências de culturas de vários povos como indígenas, portugueses, africanos, japoneses, entre outros, não se pode esperar que toda a população tenha os mesmos costumes.
Hábitos e particularidades distintas de cada região “aproximam [os indivíduos], porém nem todos aprenderam a respeitar, tolerar e admirar as diferenças. Nosso país possui uma riqueza cultural enorme”, salienta Karla Soares.
Desrespeitar, ofender alguém devido à sua cultura, naturalidade, dialeto ou traços físicos e induzir ou incitar discriminação ou preconceito, seja ele de procedência regional, raça, cor, etnia ou religião é crime previsto em nosso Código Penal com pena de reclusão de um a três anos e multa.
Pesquisas:
Sudeste é a região mais preconceituosa do Brasil: 74% já falaram frases discriminatórias | Notícias Sou BH (uai.com.br) (matéria de 16/10/17 às 19:54,
atualizado em 01/02/19 às 19:09) Acesso em 26/09/22 às 22:00h
Qual foi a região que forneceu o maior contingente de colonos imigrantes? - vivendobauru.com.br Acesso em 26/09/22 às 23:03h
https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/cultura-brasileira.htm. Acesso 28/09/22 às 12,19h
https://blog.chicorei.com/viva-o-nordeste-15-celebres-nordestinos-que-marcaram-a-cultura-brasileira/ Acessado em 30/09/22 às 14:40h